Não foi de propósito, encontrei-o na escrivaninha. Era pequeno e tinha uma capa em couro, o que era inédito para mim, um caderninho que cheirava a antigo e a aventura; daquelas que eu lia escondida debaixo dos lençõis. E tinha uma moldura de cornucópias douradas. Desculpa..
Não resisti a abrir e tinha a tua letra. A tua letra docemente desenhada. Passei horas a fio a imitá-la. Rabisquei dezenas de folhas do meu caderno sem capa de couro para conseguir criar o teu abecedário. Nao consegui.
Li o teu diário e era triste. Tinhas 15 anos e eu tinha 13. As páginas eram amareladas, e eu acreditei mesmo que nunca ia ser como tu, nem ia ter tanta coisa dentro de mim como tu tinhas, nem ia chorar tanto como tu choravas.
Falavas do teu pai lá, e eu nao percebia, e dizias que tinhas medo...nunca te vi com medo.
Falavas de amor, platónico como tudo o que é prazeroso na tua vida. E condenaste esse amor nas páginas do diário, e eu fixei até hoje que ele não existia para ti, e que aceitaste o léxico mundano e formas quotidianas como as tartes de maça e os cariocas.
Fiquei tão triste, era criança, queria que aquela estória acabasse bem, e nem me apercebi que fazia tão parte da tua história. Sabes de quem falo, aquele, que tinha a morte nos olhos.. e que morreu. Sempre quis que tivesses ficado com ele, não sei porquê.
Lembro me de mais coisas que queria, lembro me duma frase: "o ódio destilado no alambique da guerra". Soava tão bem, era tão barroco e exuberante. Desejei com todas as forças do meu ser escrever assim, e escrever assim com a tua letra..ia ficar tão lindo, pareceria uma iluminura, com aquelas maiúsculas autoritárias.
Quis escrever como tu antes de saber sequer o que a frase significava. Um dia decidi, lambi os dedos e avancei as folhas do dicionário, como sempre me ensinaste, para saber o que era "alambique"..desculpa não sabia, e também não conhecia destilar. Senti que devia ter lido mais, tu bem dizias.
Eu compreendi a frase, não a entendi. A clareza do entendimento veio mais tarde, e foi avassalador. Qualquer forma de escrita, nunca me vai atingir do mesmo modo que esta frase, porque nunca mais encontrei nada tão poderoso e que me fizesse sofrer tanto. Senti vergonha por entender o tipo de ódio a que te referias.
Foi o primeiro objectivo da minha vida, daquelas pequenas ocorrências da infância, as que ficam. Escrever como tu, conseguir extrair mais da língua do que o que ela própria oferece. Este foi o primeiro e mais puro entendimento da minha existência intelectual e emocional.
Quis te descobrir mais, mas és tão distante mãe, quis ouvir a Paixão Segundo S.Mateus do Bach, e depois de ouvi-la quis aprender a ouvi-la, houve alturas, aliás, que, para te combater, ouvi incessantemente a Paixão Segundo S. João, só para me provar que não somos iguais.
Mas a Paixão Segundo S. Mateus é mais bela, e mais sofrida como tu.
Depois percebi a tua missão, percebi que não conseguiste viver mais depois que eu nasci, ou se calhar depois que ele morreu, ou então nunca conseguiste viver.
Porque és tão magnânima e exterior a ti? O mundo não tem de depender de ti. Quando morreres as flores não vão desabrochar do mesmo modo.
Ninguém disse isto, nem ao Pessoa nem ao Campos.
Eu sou o teu ponto de referência, mas quero deixar de ser.
Porque achas que eu te afasto mas que preciso de ti? Mãe, es tao sábia com as palavras e o léxico pregou te uma partida. Eu aproximo te, e preciso te. Mas tens de descer a mim. Nao! Tens de me deixar subir a ti. Tornares tudo plano, sem quebras ou vacilos, só para eu entrar um pouco no teu mundo e passares tu a ser o meu ponto de referência e menos a tal ocorrência de infância.
És tu para todos. Desgastas-te para seres de todos, e todos têm espaço para serem mais deles. E todos os dias és menos de ti e para ti.
Nao deixes mãe. Escreve o teu livro. Tu achas que não tens autoridade. Ganha essa vitória a ti mesma, permite te a entregares-te sem almofadas, tintas ou pérolas.
Plantamos uma árvore juntas. Ensinaste me a escrever, agora eu ensino te a ti.
a Inês